Por José Sarney
Severo Gomes e Henriqueta, sua mulher, pessoa de caráter e coragem, acompanhavam Ulysses e Dona Mora no trágico voo de helicóptero em que desapareceram ao largo de Angra dos Reis.
Joaquim Nabuco, ao escrever esse livro extraordinário que é Um Estadista do Império, nos dá uma lição que jamais aprenderemos: fazer perfis, colocar em poucas linhas um retrato dos homens.
É quase impossível fazer sequer um desenho de Severo Gomes. Dizer que foi um patriota é pouco. Em Severo Gomes a ação política estava indissoluvelmente ligada à sua personalidade. Como político, não era o articulador clássico, mas um organizador da articulação. Era dotado de grande cultura, apoiada numa memória fantástica e num saber enciclopédico. Tinha o gosto da vida, uma alegria de saber sorrir, um riso entre a malícia e a vivacidade intelectual.
Mas eu vi Severo e Henriqueta sofridos olhando murcharem as flores da vida. Pedro, amigo e colega dos meus meninos, o filho único, tragicamente foi levado pelas mãos da morte.
Gostava de reunir amigos. Recebia sem requintes, mas era um grande anfitrião. Lembro-me de um fim de semana em São José dos Campos. Entre os convidados o general comandante da Brigada de Campinas. Octávio Frias, ali presente, apertou o homem. Fez duras críticas ao regime. O general tentou reagir. Frias não recuou e investiu forte, de alabarda à mão. O clima ficou pesado. Severo não vacilou: tocou a ordem de servir uma leitoa, assada por um especialista contratado em Minas. E confidenciou: “Vamos sair juntos com o general, porque assim escaparemos à ordem de prisão que ele vai fazer quando chegar ao quartel. Esta casa é o centro de subversão do Vale do Paraíba…”
Grande “causeur”, sua prosa era viva e rica. Cheia de referências eruditas, sem desprezar o pitoresco, a ironia, a farpa e o brilho das citações históricas.
No meu sítio do Pericumã, num domingo, deu-me um conselho que não pude esquecer. “Toda fazenda dá prejuízo. Mas o prejuízo que dá maior satisfação ao dono é um casal de jumentos, para mostrar aos visitantes. Visita adora jumento.” Comprei os jumentos e uma briga com Marly. Os bichos comiam as plantas cultivadas com trabalho e carinho por suas mãos. Mas era uma festa! Com direito a cenas de vigor e relinchos de glória.
A conversa saiu para equitação. Falei dos andares do Maranhão. O “dois cortado”, o “esquipar”, o “mão quebrada”. Severo humilhou me. Disse-me que o cavalo, segundo a mitologia, chegara à Grécia pelo mar. “Veja os centauros.” Tácito, Virgílio e Horácio escreveram muito sobre cavalos. Que os estribos e arreios tinham sido descobertos no século 4. Falou do montar do duque de Alba e de outro de que não me recordo. Depois, sem ponto nem vírgula, saiu fluente para Kant, Hegel, Rousseau, Hume e Locke, que tratava com intimidade. E da filosofia saiu para sementes, mulheres, revoluções, economia, religião e tudo que lhe dava na telha. Não parava. Sabia tudo.
Quando Severo Gomes era ministro da Indústria e Comércio, recebeu relatório de um grande laboratório internacional, destinado a seus acionistas, justificando os lucros baixos naquele ano:
“O inverno foi muito fraco e, com o tempo bom, não tivemos a incidência de pneumonia nem complicações respiratórias. Os casos de gripe foram muito aquém de nossas previsões, e os gastos com anúncios sobre nossos produtos, excessivos.”
“Assim, pedimos a compreensão dos nossos acionistas para os baixos lucros, que não foram decorrentes da falta de esforço de nossos executivos.”
E o relatório continuava:
“Contudo, as perspectivas de melhoria são excelentes. Todas as previsões meteorológicas indicam que o próximo inverno vai ser rigoroso, com novos vírus gripais, não sendo descartada a hipótese de incidência de epidemias.”
“Assim, o volume de consumo dos nossos medicamentos vai ser muito grande e explosivo, compensando o fraco desempenho deste ano.”
“Isto é o capitalismo”, dizia Severo para fechar a prosa.