Deu na Revista Piauí
Flávio Dino e Arthur Lira se encontraram, em Brasília, durante uma reunião tensa da qual participaram todos os ministros do Supremo Tribunal Federal, dois ministros do governo Lula, o procurador-geral da República e os presidentes da Câmara e do Senado. Estavam ali para discutir as decisões recentes do STF, que na semana passada suspendeu o pagamento de emendas Pix e impositivas aprovadas pelo Congresso. Dino e Lira trocaram farpas, mas, no final, o clima foi de acordão: determinou-se que as emendas voltarão a ser pagas, contanto que o Congresso se comprometa com algumas regras de transparência.
Um dia depois, na quarta-feira (21), Dino assinou sem alarde um despacho que pode atingir Lira. O ministro encaminhou ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, uma lista de 21 processos que envolvem possíveis irregularidades na execução de emendas de relator (conhecidas como RP 9). Entre eles, está a investigação sobre a compra superfaturada de kits de robótica em Alagoas, que envolve assessores próximos a Lira.
A lista de processos foi montada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) a pedido de Dino. Agora, o ministro a enviou para o órgão que tem poder de investigá-las criminalmente. “A Procuradoria Geral da República deverá ter ciência [dos processos], para as providências que julgar cabíveis”, escreveu Dino. Além dos kits de robótica, estão nesse pacote as fraudes cometidas contra o SUS no Maranhão (reveladas pela piauí) e suspeitas de irregularidades no programa Calha Norte e na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), estatal loteada por partidos do Centrão.
O inquérito contra Lira foi arquivado, em setembro do ano passado, pelo ministro Gilmar Mendes. Ele acatou o argumento da defesa, segundo o qual a investigação mirava, desde o começo, o presidente da Câmara – e, por isso, não poderia ter começado na primeira instância, já que Lira tem direito a foro privilegiado. Mendes não apenas trancou a parte da investigação que poderia envolver Lira: ele arquivou tudo e mandou destruir as provas que haviam sido obtidas. O despacho de Dino pode fazer com que o inquérito seja reaberto, se assim a PGR decidir.
O escândalo dos kits de robótica, revelado pela Folha de S.Paulo, resultou na Operação Hefesto, deflagrada em 1º de junho de 2023. Agentes da Polícia Federal cumpriram mandados de busca e apreensão nos endereços de Luciano Cavalcante, principal auxiliar de Lira, e do motorista de Cavalcante, Wanderson Ribeiro Josino de Jesus. O inquérito, iniciado pela PF em Alagoas, apurava o desvio de 8 milhões de reais na compra dos kits pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A PF chegou ao assessor de Lira depois de seguir o dinheiro movimentado pela Megalic, fornecedora dos equipamentos. Segundo a investigação, a empresa repassou valores para Pedro Magno, um empresário de Brasília, e sua mulher, Juliana Cristina. Os dois foram presos temporariamente sob suspeita de operar desvios de verbas públicas utilizando-se de empresas de fachada.
A operação, batizada em referência ao deus grego da tecnologia e da metalurgia, apreendeu uma bolada de 4 milhões de reais em um cofre de um dos investigados. Dinheiro que, até hoje, está sob custódia estatal. A PF apurou que a Megalic repassou 550 mil reais à construtora EMG, de Alagoas, que, segundo os investigadores, construiu uma casa para Luciano Cavalcante. A piauí revelou que os agentes apreenderam no endereço de Wanderson, o motorista, anotações sobre onze pagamentos para uma pessoa chamada “Arthur” entre abril e maio de 2023, no valor total de 265 mil reais. Esses pagamentos incluíam despesas como hospedagem em hotel, manutenção de veículos e outras transações financeiras. Como a investigação chegou ao que possivelmente era o nome de Lira, o caso foi remetido ao Supremo devido ao foro privilegiado.
Nenhuma dessas informações consta no despacho de Dino, que também não menciona o arquivamento do caso por Gilmar Mendes. Caso o procurador-geral da República entenda que o relatório do TCU constitui um novo elemento da investigação, ele pode optar por reabri-la. Interlocutores de Lira ouvidos pela piauí alegam que o relatório já existia quando o caso foi arquivado, e que, portanto, não há base legal para a reabertura do inquérito.
Também nesta semana, dias antes do despacho de Dino, o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) já havia entrado com uma representação na PGR pedindo a abertura de um inquérito criminal ou civil para apurar a compra dos kits de robótica. Valente argumentou que a anulação das provas por Gilmar Mendes não invalida a necessidade de investigação, e defendeu que as provas ainda válidas sejam utilizadas para dar prosseguimento ao inquérito. “A violação do princípio do juiz natural não invalida elementos probatórios que não exigem autorização judicial prévia para serem produzidos. Nesses casos, não há uma relação de causalidade necessária entre a irregularidade e a prova”, diz o documento, assinado por Valente e pelo advogado Alberto de Almeida Canuto.
O timing da decisão de Dino é delicado. Põe Lira na defensiva num momento em que ele tenta projetar força para conservar a farra das emendas e emplacar um sucessor na presidência da Câmara. O despacho, além disso, tensiona ainda mais a relação entre Dino e o deputado. O ministro, que há poucos meses comandava a pasta da Justiça e Segurança Pública do governo Lula, tem liderado a tentativa de controle sobre as emendas parlamentares. Além disso, pediu recentemente a Lira que explicasse por que razão ainda não abriu a Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI) para investigar abusos cometidos por planos de saúde. Apoiada por 310 deputados, mais de três quintos da Câmara, a abertura da CPI tem sido protelada pelo presidente da Casa.
Na reunião de terça-feira (20), na sede do Supremo, os dois se sentaram afastados um do outro. Quando os participantes discutiram as emendas parlamentares de comissão e de bancada, Dino marcou posição: “não pode mais ter rachadinha”, disse, mirando Lira e Rodrigo Pacheco, acomodados no lado oposto do salão. Em outro momento, Dino fez alusão às fraudes cometidas contra o SUS no Maranhão. Conforme revelou a piauí, cidades do interior do estado inflaram artificialmente dados de atendimentos médicos para, com isso, receber mais repasses de Saúde. Pedreiras (MA), por exemplo, registrou 540,6 mil exodontias, o nome técnico da extração dentária. Para chegar a tanto, o município teria que ter arrancado catorze dentes de cada morador.
Dino, que era governador do Maranhão na época do esquema, comentou: “Teve ‘emenda Pix’ que dava pra arrancar os dentes de uma cidade inteira.” Lira retrucou, dizendo que não era verdade, que o dinheiro envolvido não tinha relação com emendas parlamentares. Dino, insistindo em seu ponto, concluiu: “O senhor sabe que foi, eu sei que foi e o senhor sabe que eu sei.”